Traduzir este blog

Pesquisar

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

CASA DE BARRO


CASA DE BARRO
Texto: Emerson Gomes

O
 público vai entrando e já encontra um ator em cena se balançando numa rede velha, todo enrolado. Nesse momento está chovendo. O palco está em penumbra. Do lado esquerdo do ator encontra-se um banco de madeira velho com uma garrafa de cachaça, uma carteira de cigarros e uma lamparina.  Na frente do palco encontra-se um fogareiro com uma panela velha e no chão um prato com uma colher.
(Enquanto balança, fica balbuciando sons e palavras, em algum momento canta musicas que traz lembranças do passado, para bruscamente).

SEBASTIÃO   A droga desses mosquitos não me deixa dormir em paz. (espantando os mosquitos) sai, sai, sai, sai. (impaciente senta na rede, pega o pedaço de pano que se cobre e se abana) Por mais que chova, esse calor horrível não deixa a gente dormir direito! (deita novamente e levanta bruscamente). Quer saber de uma coisa, se não pode vencer o inimigo, junte-se a ele. (falando com os mosquitos) Pronto! Já levantei, estou aqui pra fazer companhia. Agora dá pra parar de me perturbar? (pega o fósforo ascende a lamparina, põe uma dose de cachaça e ascende um cigarro, começa a tossir). A minha vida é assim mesmo, uma merda, por que eu nunca, ta ouvindo, nunca tive a oportunidade de nada. Lá em casa nós éramos 5, o Teobaldo o mais velho, Nildinha, Jaqueline, Maria Bernadete e eu. Sabe o que é limite? Pois é, isso lá em casa não se tinha, não sabíamos nem o que era isso.
Podíamos fazer o que bem entendesse que não se escutava uma bronca. Agora imagine uma família dessa, com 5 porra pequena que só dava trabalho. Esposo que abandona a mulher que não tava nem ai pros filhos. O que tinha de perder, ela já tinha perdido mesmo, o marido, seu grande amor. Pela manhã, acordava, fazia o café quando tinha e esperava a gente acordar com aquela cara toda inchada, cheia de remela e cabelos grudados. Nem banho nos forçava a tomar. Na verdade, éramos criados como animais, já nascendo e aprendendo a viver por si. Naquela casa de barro, telhado baixo, piso de areia batida e muita sugeira a desunião era tão grande que não podíamos uns olhar pros outros, principalmente quando íamos almoçar, ou melhor, comer, porque pobre e animal, não toma café da manhã, não almoça e nem janta, come, come mesmo. Isso quando tem. Se hoje estou aqui nessa merda é por causa disso, dessa vida que fui acostumado a viver. Com 8 anos eu já era obrigado a lavar as louças com aquele sabão de barra que só fede a sebo. No inicio eu sentia muitas náuseas quando sentia aquele cheiro, mais tinha de se acostumar ou então, morrer de vomitar, e ai de mim se não lavasse, a corda comia solta no lombo. Estudar? (risada, tomando uma dose), nem no sonho, nunca fui à escola. Estudar pra quê? Dizia a minha mãe. Pra morrer de fome do mesmo jeito? Ficar dentro de casa é muito melhor do que ficar perturbando o outro. E afinal de conta esse negócio de ler estudar não enche bucho de ninguém. Que esperança o que minha senhora? Sabe o que é esperança pra mim? È o bucho cheio no outro dia. Depois dessa eu só tenho uma outra, ver meu Geraldo de novo dentro de casa. Não precisamos perder esse tempo se nossa vida é assim mesmo.  Eu ficava me perguntando por que minha mãe aquela mulher enorme de gorda não cuidava da gente como deveria. As outras crianças da comunidade eram limpas, bem tratadas, andavam sempre cheirosas. Eu tinha tanta inveja que às vezes eu chorava, sozinho. Porque compartilhar o choro e chorar sem causa vista era frescura de rico. (sonhador com um copo na mão) Eu ficava observando as mães das outras crianças e tinha vontade de ser filho delas. (pegando o banco e colocando em outro espaço, sentado) (com ar de recordação) Dona Raimundinha a nossa vizinha era muito carinhosa com seu filho, todos os dias o Noca tomava uns três banhos, (pegando o tamborete e fazendo de cerca) eu ficava olhando pela cerca lá do quintal e imaginava minha mãe fazendo aqueles gestos de carinho e cuidados. (com muita raiva) Mas não. Nunca. Não conto as vezes de quando fui dormir sem tomar banho. Ela só queria saber de jogar baralho com minha tia, que era um enjoou em forma de gente. Sabe aquelas mulheres sem nenhum tipo de pudor, que fala palavrões? Assim era ela. Sem falar dos seus shorts mostrando a poupa da bunda. Imagine uma criatura de um metro e meio, gorda, faltando os dentes da frente, a cara toda esburacada, a boca vermelha de batom e aquelas sobrancelhas finíssimas e um sinal verde do lado esquerdo do rosto, usando um perfume que do outro lado do mundo dava pra sentir o cheiro. Era a coisa mais feia que se podia ver, e não parava de fumar. Agora tente imaginar essa mulher fumando, cada tragada levava todo o cigarro. E quando soltava a fumaça, era a coisa mais engraçada que já vi. Parecia chaminé de cerâmica com aquela fumaça saindo de dentro daquela boca sem dente (imitando a tia). Eu só culpo a minha tia por a minha mãe ser o que era – Mulher! Madalena! Se eu fosse tu, já tinha era colocado outro homem dentro dessa casa. Não sei como tu agüenta passar uma semana sem aquelas coisas, quanto mais 3 anos. Eu, minha filha não passo mais de que dois dias sem fazer o balacobaco. O que não falta é homem querendo fazer as coisas com a gente, até esses meninos a gente traça, sim minha filha, a gente ensina, a partir dos doze anos já tão tudo engrossando o talo e atrás dum buraquinho quentinho para brincar. Ah! Minha filha tem cada menino taludo, só você vendo, ou melhor, só você sentindo. Qualquer dia desses, eu pego de jeito o meu sobrinho Teobaldo. Tá ouvindo? (falando pra Teobaldo) Qualquer dia desses a titia quer conversar baixinho com você. Claro! Nessa idade eles tão tudo lá, se acabando na punheta. E se a gente não chegar junto, perdemos a vez, sabe porquê? Essas bichas chegam na frente, ilude os coitados aí já se vil, ta no papo, ainda dá uns trocados e eles saem todos felizes. Dinheiro comigo, só recebendo, dar eu não posso, não tenho. Recebo e muito bem, é só beijar um velho, fazer pegação e fazer o balacobaco, pronto. Dinheiro na mão, comida no bucho. Agora você fica se acabando de tristeza, com um monte de menino com os ossos tudo fazendo nó (pegando Sebastião pelo braço) olha só a Nildinha, qualquer dia desses a gente não sabe onde é que tá a coxa e a canela dela, tudo é uma coisa só. Sem falar minha filha, que elas estão crescendo e se puxar à titia aqui vão se dar bem. Vai Madá! Desabrocha pra vida, meu bem. Pega o buraquinho quentinho minha filha e sai dessa história, faz outra, o que não falta é velho aposentado quero nosso calor. Aproveita e enche a barriga desses meninos. Me dava nos nervos quando ouvia aquilo. Apesar de ter apenas 8 anos e não saber muita coisa sentia raiva dela só pelo jeito de ser e não suportava aquele perfume. (sonhador) Nunca vou esquecer. A mãe do Noca estava dando banho nele no final da tarde e eu estava ali, olhando aquela situação como era de costume, quando dona Raimundinha me pregou um baita de um susto,
 - peguei! Espiando a gente em Tião. Vem pra cá anda, pula a cerca e vem pro meu quintal.
Quando escutei aquilo quase morri do coração, mas vi que era só uma brincadeira e relaxei. Tentei resistir o convite mais não agüentei, pulei a cerca e já estava no quintal de dona Raimundinha.  Aquela mulher me pegou pelo braço, tirou minha roupa e me deu um banho tão gostoso, que minha emoção foi tanta que não sabia o que fazer, passou sabonete, shampoo e depois me enxugou com a mesma toalha do Noca. Me levou pra dentro de casa, me vestiu, me sentou numa cadeira e pós um prato de comida. Fiquei em estado de choque. Não sabia o que fazer, nunca aquilo tinha acontecido comigo,
- Vamos Tião coma, é pra você, merende, vamos, o Noca já está quase terminando. Com aquilo tudo na minha frente, comecei a comer, curtindo bastante o momento para que não se acabasse tão rápido. Quando terminei Noca olhou pra mim e falou. Vamos assistir televisão? Nunca respondia que sim nem que não, mas sentia uma vontade intensa de querer as coisas. E começamos a assistir. Para mim o mundo tinha parado e eu, sonhava com aquilo todos os dias na minha casa.
Seu Nonato o marido de Dona Raimundinha chegou em casa e quando escutei aquela voz grossa sai disparado para minha casa, tinha muita vergonha de seu Nonato.
Quando cheguei em casa, minha mãe ainda estava jogando baralho com aquela coisa feia de minha tia, parecia que nada importava naquele momento. Meus irmãos estavam no terreiro brincando com areia e eu lá todo santinho, calado, sentado, sem fazer absolutamente nada. Não queria sujar aquela roupa, muito menos o meu corpo. Acho que naquele banho dona Raimundianha tirou uns dois quilos de cerouto, só podia ser, me esfregava com tanta força que às vezes doía.
É por isso que te digo meu amigo, a família é muito importante na formação de um ser humano. Meu irmão mais velho o Teobaldo hoje se encontra na cadeia, mas você queria o quê, roubava desde criança e minha mãe, não falava nada, fazia que nem sabia. Mas fazer o quê? Foi crescendo e se acostumou nessa vida. (Com muita raiva) Se hoje eu não sou ninguém, a culpa não é minha, não tive nenhuma chance. A gente foi crescendo e minha mãe foi ficando doente, e se não fazia nada pra gente imagine doente, foi ficando chata e irritante. Outro dia ela chamou Nildinha e perguntou se ela não tinha vontade de namorar. Nessa época Nildinha tinha uns treze anos, já tava uma mocinha, os peitinhos já começavam a aparecer. Nildinha ficou sem graça e respondeu que não. Bem que ela já tinha se interessado por um rapazinho da mesma idade, mas nunca teve coragem. Como chegar perto das pessoas com aquele odor? O Sovaco de Nildinha fedia tanto que ardia no nariz. Ela disse pra Nildinha que namorar, era uma coisa muito boa e que às vezes dava muito dinheiro. Pois é meu amigo. A verdade era que ela estava com aquelas idéias daquela minha tia nojenta. Estava  induzindo minha irmã à prostituição, até o homem ela já tinha em vista.
Numa noite de chuva a gente tava em casa, mamãe, as três meninas eu e o tal de  Zé do Bode, meu irmão ainda não tinha chegado. Nesse dia aconteceu um verdadeiro escândalo dentro de casa, mamãe chama Nildinha e mostra a menina para esse tal de Zé do Bode. – Essa é amenina mais bonita, em Dona Madalena, caprichou na forma eu acho que hoje a janta vai ser farta. Pois os dois dentro do quarto e trancou aporta e falou pra Nildinha que não precisava ter medo, era só pensar coisas boas que ia ser muito bom, para ela e para todos. E ficou querendo distrair a gente, nunca aquilo tinha acontecido, ela não era uma mãe de conversar. A Nildinha dentro daquele quarto nos deixou muito apavorados. Escutávamos algumas coisas e não sabíamos o que fazer, Nildinha começou a chorar e ele pedia calma, que ela não tivesse medo, que não ia ser ruim, ela ia gostar, tinha certeza. E Nildinha chorando e chamando por nossa mãe. Ficamos no chão da sala super assustados sem poder fazer nada. De repente o Teobaldo chega e pergunta o que é que tá acontecendo. Nessa hora minha mãe quase morre do coração. Levantou da rede de uma vez e saiu em direção ao quarto. Pedindo para o Zé abrir a porta. Teobaldo não quis conversa e antes que a porta fosse aberta ele arrombou. A minha irmã Nildinha estava toda nua, tremia e chorava muito. Teobaldo puxou uma faca e parti pra cima do Homem. – Tá pensando o quê meu amigo, que aqui é a casa da dona Lalá que você vai entrando e se apossando das meninas.  Eu vou te matar velho vagabundo, sardento. Se tu tiveres bulido com a Nildinha, só sai daqui direto pro cemitério. O que foi que ele fez contigo em Nildinha? Diga logo que quero matar esse velho maldito. Tu pensas que não te homem aqui dentro dessa casa, heim? Responde.  Se tu querias transar com alguém, porque tu não comeste essa porca gorda? Essa mãe desnaturada que traz homem pra filhas. Imunda, você é uma imunda. Além de imunda ainda é vagabunda. Nunca teve coragem de cuidar da gente, de arranjar um bocado, agora que tá dentro dessa rede doente, deprimida porque não tem mais o pau do marido no meio das pernas fica querendo encher essa pança as custas de minha irmã. Toe tento sua vaca gorda. Você pensa que vai fazer das minhas irmãs o que sua irmã faz por ai é? Sua porca, eu tenho nojo de você. E sai daqui, se não eu mato os dois. E tu preste atenção velho nojento, se tu pensavas que iria tirar proveito da minha irmã, tá muito enganado. Eu bem que poderia arrancar essa porcaria, queria ver se tu ias sentir prazer com uma faca roçando no teu pau. Se eu passar por ai e te ver é melhor que saia da minha frente. (Gritando) Sai, sai seus imundos, levanta da rede vaca gorda, saia, saia. (começa a chover. Toma uma dose de cachaça e fuma um cigarro, deitando na rede, tem uma crise de choro)  No outro dia sai de casa, fui pra cidade e mais uma vez estou aqui nessa casa de barro, nesta miséria de vida, sozinho, sem ninguém perto de mim. (apaga a lamparina, se cobre com o lençol e começa a cantar até dormir. A chuva cai forte e luz vai caindo e a cortina se fechando).